segunda-feira, 16 de julho de 2012

UMA CONVERSA COM O OUTRO FILHO DO DAITO-RYU





Por: Ellis Amdur *
Tradução: Frederico Ventriglia.



Nos últimos seis meses tive a honra de ser convidado a ensinar Kenjutsu e Aikido na Pacific Rim Martial Arts Academy, uma escola que oferece instrutores de Hapkido, tae kwon do, judo e Aikido. A escola é dirigida pelo Quanjan Nim (3ª geração de Grandes mestres) James Garisson da Ju Sool Kwan. A central da Ju Sool Kwan fica na Coréia.

Os praticantes desta arte afirmam que o fundador, Young Sool Choi, estudou Daito-ryu com Sokaku Takeda. Infelizmente, nenhum registro foi encontrado que concretizasse essa afirmação e é provável que nunca seja encontrado. Primeiramente, devido à colonização da Coréia pelos japoneses, muitos registros históricos foram perdidos ou destruídos. Além disso, segundo o Sr. Garisson, o povo coreano geralmente não tem uma forte afinidade de manter a tradição inalterada, ou mesmo de manter registros de tradições como fazem as escolas japonesas de artes marciais. As artes marciais coreanas, ao invés disso, mantiveram-se como entidades sincretistas, absorvendo e adaptando novas influências de cada geração, esforçando-se para estabelecerem-se de forma viável no ambiente em que escolheram. A viabilidade é determinada por alguns fatores como efetividade de combate, influência política, posição financeira, posição social dos participantes e mudanças dos padrões.

Tudo isso faz do mundo das artes marciais coreanas um contínuo agito, mostrando algumas das melhores e piores características da prática das artes marciais. Do lado de baixo, super-graduações, e vendas de graduações existem em abundância, e movimentos políticos entre os praticantes ocorrem em todos os níveis. O comercialismo toma lugar numa escala arrasadora e as tradições muitas vezes se alteram para adaptar-se a um público inconstante. Do lado de cima, porém, indivíduos criativos, que treinaram atentamente os requisitos básicos de suas artes, tem diversas oportunidades para respirar fundo e continuar a se desenvolver. O yudo (judo) coreano, por exemplo, mostra uma energia e uma fúria muitas vezes ausente na prática dos dias modernos nos dojos do Japão. Algumas das inovadoras técnicas de chute do tae kwon do foram incorporadas ao karate, tanto na Europa quanto na América, e isto, através da influência dos torneios internacionais parece Ter sido trazido de volta para dentro de algumas escolas japonesas.


  Talvez o Hapkido, mais do que qualquer outra arte marcial coreana, dá exemplo desta energia. Há pequenos dojos em alguns becos, dirigidos por homens do sombrio mundo que há entre a lei e o crime organizado, escolas que ensinam como sobreviver e vencer nas duras ruas de Seoul. A guarda presidencial é composta por exímios praticantes de Hapkido, e eles o enfocam como sendo parte de uma força paramilitar.

Grão Mestre Mauro Cesar - Hoshindo Hapkido

Algumas escolas atraem por promover aulas mais leves, com técnicas fluidas, suaves e controladas, tanto que seus alunos dificilmente voltam para casa com alguma contusão ou machucado. Outras escolas são mantidas por organizações budistas e o treino é considerado uma forma de tranqüilizar a mente a maior parte do tempo dos treinamentos é ocupado com meditação. Algumas facções separadas surgiram, tornando-se mais populares em outros países do que na Coréia. As mais destacadas dentre estas facções são a Hwa Rang Do e a Kuk Sool Won, duas das quais agora reivindicam suas origens de centenas de anos atrás.

Recentemente tive a oportunidade de assistir um longo vídeo de uma demonstração nacional coreana do Hapkido Ju Sool Kwan. Embora as técnicas e estilos dos diferentes grupos dentro da federação variem, acredito que um poderia facilmente reconhecer todos os participantes como pertencentes a uma única tradição pintada, como era, pela personalidade do fundador e por sua arte.

Muitas das demonstrações tem caráter teatral com o rompimento de tijolos e tábuas, e um dramático trabalho de pés: chutes circulares, chutes duplos e chutes voadores laterais. Havia uma ênfase ao uso do cinto e da bengala como armas de defesa pessoal, defesas desarmadas contra espada e faca e diversos movimentos de defesa pessoal contra cadeiras.

Havia um esforço freqüente em se mostrar as técnicas deixando o mais claro possível sua brutalidade. Seqüências eram usualmente encerradas com imobilizações através de chaves em juntas de articulações ou com projeções. Os professores mais jovens, talvez com a esperança de serem escolhidos para fazer parte da guarda presidencial ou apenas com a intenção de mostrar seu poder, projetavam deliberadamente seus parceiros em ângulos desajeitados, muitas vezes direto em cima de suas cabeças ou pescoços. Os ukes, por sua vez, resmungavam, gemiam e até mesmo gritavam de dor quando as técnicas de imobilização eram aplicadas e, embora isso fosse em benefício da audiência, muitas vezes se machucavam tanto que precisavam de assistência fora do palco.

O Sr. Garisson me informou que estas performances teatrais são típicas das demonstrações na Coréia, mas no dojang (dojo) a conduta é contrária, pois a aceitação, de maneira calma e quieta, da dor é uma norma e os treinos, apesar de serem muito severos, não são feitos da forma brutal como vi nas demonstrações.

Grão Mestre Mauro Cesar - Hoshindo Hapkido

A maioria daqueles que não são coreanos tem uma imagem do Hapkido que se origina, em parte dos filmes e também das revistas e demonstrações de artes marciais. Entretanto, as técnicas que são mostradas através destes veículos são mais exageradas e incluem chutes voadores, golpes giratórios de pernas e socos. Só casualmente técnicas de imobilização são mostradas com detalhe e, muitas vezes são feitas de maneira exibicionista, que está longe da realidade do Hapkido. Infelizmente também é verdade que muitos dos praticantes que alegam estar ensinando Hapkido, principalmente fora da Coréia, receberam suas graduações por meios não muito honrados. Os instrutores legítimos são poucos. Deste modo, foi difícil para muitos de nós que estamos fora da família do Hapkido, percebermos o quanto suas técnicas se assemelham tanto com o Daito-ryu quanto com o Aikido, pois não tivemos a oportunidade de ver instrutores de alto nível.

Foi completamente surpreendente para mim ter visto o vídeo anteriormente citado, e mais ainda, assistir a uma recente demonstração do Sr, Garisson , que junta técnicas de imobilização e projeções do tipo kokyu-nage como parte principal de seu currículo. Poucos são os países que possuem técnicas de imobilização de juntas e de segurar o adversário. Notáveis são os da China (genericamente conhecido como chin’na), e da Indonésia/Malásia (como integrantes do pentjak silat). Nas artes deste dois países, no entanto, as formas de firmar o corpo e de utilizar os membros, o tronco e os quadris são completamente diferentes dos métodos que são normalmente utilizados no Daito-ryu e no Aikido.

A forma de alinhar o corpo e coordenar seus movimentos também é diferente do judo e do karatê, duas artes das quais poderiam ter influenciado o Hapkido durante sua incorporação ao sistema de ensino coreano antes da Segunda Guerra Mundial. Ë verdade que o Hapkido tem algumas projeções que parecem ser derivadas do judo, e tem também algumas técnicas de socos e chutes que podem, em parte, ter sido influenciadas pelo karate, mas em sua maioria, as imobilizações e projeções, bem como o taisabaki (movimentos de deslocamento do corpo fora da linha de ataque e numa posição favorável para um efetivo ataque ao oponente) são muito parecidas com as do Aikido. Na verdade, se alguém pegasse um vídeo e apagasse a s técnicas de chutes, bloqueios e socos, e trocasse a roupa dos participantes pelo keiko gi e pelo hakama, de estilos japoneses, as demais técnicas pareceriam muito com uma forma rude de Aikido.

Os modos do Hapkido e a forma como ele se apresenta parecem ser de outro mundo, e muitas de suas técnicas são estranhas, não só para a linha do Daito-ryu, mas para todas as artes marciais. É certamente verdade que o Hapkido também incorporou muitas técnicas de origens coreana e chinesa. No entanto, estas características alienígenas se originaram, acredito eu, do fato dos coreanos verem os combates, as demonstrações e a prática das artes marciais, de uma maneira diferente à dos japoneses, sendo assim, é natural que suas estruturas e a forma com que exercem sua marcialidade sejam diferentes. Fora isto, baseado nas formas com que as técnicas de imobilização e projeção são feitas, eu estou convencido de que o Hapkido é originário do Daito-ryu.

Sensei Kondo

Esta opinião categórica é induzida também por outro vídeo que assisti recentemente do mestre de Daito-ryu Sensei Katsuyuki Kondo. Eu tenho observado o Daito-ryu ao longo dos anos e acho, que é a mais excepcional das artes. Embora seja classificada como koryu (antiga tradição marcial), é completamente diferente de qualquer outra escola de jujutsu ainda existente no Japão. Uma das mais significantes diferenças é o número de katas literalmente são centenas de elaborações de técnicas de pegada e imobilizações. O esboço quase perfeito das técnicas é muito raro entre as antigas artes marciais, principalmente no que diz respeito ao combate desarmado, mão a mão. As técnicas desarmadas constituíram quase sempre uma pequena parte de um enorme número de katas preocupado com o combate a armas. Uma Segunda diferença é a natureza um tanto quanto enfeitada dos katas muitas vezes há uma atmosfera circense (comum na maioria das escolas) tanto nos dramáticos arremessos quanto nas técnicas em que uma pessoa é imobilizada e então um segundo membro seu travado e em seguida um terceiro e, algumas vezes, enquanto ainda está se imobilizando o primeiro indivíduo, uma Segunda ou terceira pessoa ataca para ser imediatamente imobilizada e presa entre os outros. Finalmente há uma inversão dos papéis, atualmente muito comum nas artes marciais modernas, na qual o sensei ou aluno mais graduado é o tori (aquele que projeta ou vence), e onde o aluno mais novo é o uke (aquele que é projetado ou perde). Ao contrário, o Daito-ryu e quase todos os outros koryu insistem que aquele que está ensinando deve efetuar as quedas. O ensinamento acontece quando o professor domina a situação, sendo necessário ao estudante, trabalhar no limite de sua capacidade com o objetivo de vencer. Existe um momento no filme de Daito-ryu onde o Sensei Kondo faz uma queda para seu aluno visando esclarecer uma situação e, de forma muito natural, para a demonstração para recuperar o fôlego que o havia vencido. Não mencionei isto para criticar Sensei Kondo, o qual certamente está mantendo a tradição dos métodos Daito-ryu, a qual é com certeza a terceira geração desde o Sensei Sokaku Takeda, mas sim para notar como o Daito-ryu é diferente dos outros koryu jujutsu.

O Daito-ryu tem um currículo extremamente longo e elaborado, sendo que a memorização de cada uma de suas técnicas levaria décadas. Isso sugeriu que o Daito-ryu, apesar do rigor de muitas de suas técnicas, não fosse considerado uma arte de guerra.

Ele foi desenvolvido, ou ao menos corrigido e enfeitado para ser usado de forma pacífica e tranqüila em tempos de paz. O Daito-ryu foi criado por um indivíduo que parecia ter um desejo quase obsessivo de elaborar todos os caminhos possíveis através dos quais um ser humano pudesse segurar ou imobilizar outro. Essa elaboração é tão extensa que eu acredito que muitos indivíduos, mesmo não podendo dominar todas as técnicas do currículo poderíamos após alguns anos, absorver inclusive alguns princípios os quais os tornariam aptos a refinar em suas artes marciais os traços do Daito-ryu. A maioria dos sucessores significativos do Daito-ryu, incluindo alguns indivíduos como Seigo Okamoto do Daito-ryu Roppokai, Ryuho Okuyama do Hakko-ryu, Kotaro Yoshida (Pelo menos da forma como foi passado para sua Segunda geração sucessora, Don Angier) e, principalmente Morihei Ueshiba do Aikido e Young Sool do Hapkido, abandonaram o kata do Daito-ryu assim como grande parte das técnicas dramáticas irreais. Apesar das diversas diferenças, a elaboração de aproximadamente dez a doze técnicas está associada às técnicas gerais de todas estas artes (Ikkyo-gokyo, kotegaeshi, shihonage, irimi / kokyu / tenchi-nage, jujigarami, koshinage e kokyuho). Estas técnicas são praticadas de uma forma mais suave, sem o ritual e sem a forma dura do kata do Daito-ryu. Aqueles que deixaram o Daito-ryu, o fizeram por uma série de razões, mas cada um, num nível técnico, parece ter alterado a arte praticamente da mesma maneira, simplificando a técnica e enfatizando os princípios através das variações.

E ainda, o Aikido e o Hapkido, embora sendo claramente similares, são artes muito diferentes. Para aqueles do mundo do Aikido, preocupados com suas insuficiências, como um sistema de combate mão a mão, o Hapkido oferece o outro lado do espelho. Iriminage por exemplo, é feito com os dedos pressionando os nervos centrais abaixo dos ossos e dolorosos pontos de pressão são atacados em todo o corpo. Chutes podem sair com força suficiente para quebrar um osso e as técnicas muitas vezes são finalizadas com um golpe fatal e não apenas com uma imobilização. Se alguém se preocupa com a falta de eficácia no combate do Aikido numa situação real de uma briga de rua, há uma outra arte na família, a qual apesar de possuir as mesmas origens técnicas, não pode ser encarada da mesma maneira.

De minha parte eu antecipo uma contínua associação com o Sr. Garisson e outros praticantes legítimos de Hapkido e procuro aprender o máximo possível com eles. No entanto, eu não tenha a intenção de misturar estas duas artes Aikido e Hapkido. Eu não estou falando de melhor ou pior; estou falando de diferença. Como já escrevi anteriormente, quase todas as artes marciais possuem uma base moral, à vezes muito profunda. Como um iniciante de Hapkido me colocou numa carta, À medida em que o praticante vai se tornando cada vez mais avançado, o contato com o uke se torna menos violento, menos forçado e menos necessário. E ainda, no nível mais elevado, o Aikido e o Hapkido tendem a se assemelhar. No entanto, ao contrário da maioria das outras artes marciais, onde a paz surpreendentemente tende a desaparecer com a evolução, o Aikido demonstra necessitar que o aiki (espírito harmonioso) esteja presente e seja uma meta a ser atingida desde o primeiro dia. As técnicas que uma pessoa aprende assim que entra no dojo são as mesma que aquelas aprendidas mais à frente.

Eu me sinto mistificado e desafiado pelo O-Sensei, um homem que foi para a guerra, que treinou obsessivamente tanto o bujutsu quanto os austeros rituais religiosos e emergiu, declarando que o Aikido é uma realização de amor e aiki não é uma técnica de luta ou de derrota de um inimigo. É o caminho para reconciliar o mundo e fazer dos seres humanos uma família. Eu encorajaria os leitores a olhar a fotografia que foi impressa muitas vezes no verso desta revista, anunciando filmes do O-Sensei, na qual ele está fazendo um movimento de tenkan com seu pulso sendo segurado por Kazuo Chiba. Eu acredito que não existe nada, em lugar algum, em nenhuma outra arte marcial, que expresse exatamente o que O-Sensei expressa aqui, com seu perfeito alinhamento de sua postura e com os braços abertos e curvados. Alguém poderia descansar um bebê dormindo em seus braços que este não acordaria. Ë aí que esta o problema do Aikido, O-Sensei treinava muito como a forma do Hapkido descrita anteriormente, um método muito diferente daquele transmitido os seguidores do Aikido.

A questão que ainda me cerca e me persegue por todos estes anos de treino, tanto no Aikido como fora dele, é simplesmente, Será que o Aikido é a melhor forma de se aprender Aikido?

Quando pratico meu koryu, me esforço para atingir o espírito dos fundadores que nasceram e morreram numa sangrenta era de sobrevivência. Tal prática me manteve seguro e capaz de ajudar e proteger outras pessoas. Mas ao praticar, muitas vezes paro e penso, O que você está fazendo? Há milhares de pessoas neste exato minuto, massacrando outros e usando métodos não muito diferentes daquilo que você está praticando agora. Eu encontrei boas razões para continuar meu treino marcial mas preciso estar atento a estas armadilhas toda vez que pratico. Segundo o comentário de Nietszche, se eu começo a brincar com a força de maneira descuidada, ela também pode começar a brincar comigo da mesma maneira.

Quando eu pergunto se o Aikido é real, eu quero dizer O Aikido irá produzir dentro de mim o que O-Sensei declarou Ter produzido e personificado dentro dele? O desenvolvimento da prática de combate provavelmente será sempre objeto de meu interesse, mas tais considerações são relevantes à medida em que suas realizações me mantém salvo de maneira que eu possa formular perguntas realmente importantes. Deste modo, no meu coração, eu desejo que todos meus estudos me levem a ser capaz de ter uma postura elegante e perfeita de boas vindas e de proteção assim como o velho homem da foto. Forte, aberto e pacífico. 


Ellis Amdur


Publicado originalmente na língua portuguesa em: 
http://www.aikikai.org.br/art_hapk.html


Ellis Amdur mora em Seattle, é especialista em intervenção em crises,  e criador da Therapeutic Self-Defense (Defesa Pessoal Terapêutica), iniciou-se na prática de artes marciais em 1968. Desde aquela época, ele já passou 13 anos no Japão e agora possui as licenças de mokuroku menjo e shihan-daí em Araki-ryu Torite Kogusogu e também de okuden (betsu mokuroku) e shihan menjo em Toda-há Buko-ryu naginatajutsu. Armur é 3º dan em Aikido e é também ativo na família Ch’en de t’ai chi ch’uan.

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