domingo, 1 de setembro de 2013

O KI NO AIKIDO

(Por Itsuo Tsuda* )
 
 
Na Europa, as pessoas se interessam pelo Aikido por sua eficiência, pelo poder que se quer adquirir. Interessam-se pela técnica, pela aquisição de reflexos, do diploma, da posição na organização e dos privilégios que vem com tal posição. São os aspectos cartesianos do problema. Enquanto que o Ki, escapa a toda tentativa cartesiana de definição. Por isso, oficialmente não existe.
Gostaria, por minha parte, de oferecer uma modesta contribuição para a compreensão desta noção difícil de captar. Não escrevo com o fim de criar um manual para os praticantes de Aikido, e sim para situar o problema num contexto geral do pensamento ocidental. Não tem importância que haja interesse ou não pela prática desta arte, porém o Aikido merece ser mencionado mesmo que só seja pela nova visão que nos dá.
 
O Ki pode ser muito eficiente, como mostra Kashiwaya Sensei
 
Muitas pessoas têm vindo pedir-me informações sobre o Aikido: “É eficiente?” Bem que poderiam ter também escolhido como outra solução uma arma de fogo ou fechaduras de segurança. Estas pessoas têm medo de serem atacadas, medo de morrer e medo de viver. Tem pressa por encontrar um meio qualquer que lhes permita, ao final de algumas lições, adquirir uma força extraordinária. Tenho rejeitado todas estas pessoas. Que ilusão. Poderíamos falar de eficácia se estivéssemos no nível do Mestre Ueshiba. É também ridículo falar disso em meu nível de desenvolvimento.
Os ocidentais têm tendência a acreditar que a aprendizagem consiste no desenvolvimento de um certo reflexo. Desde logo, o reflexo pode facilitar a organização do trabalho porque não se há de voltar ao início em cada momento, a partir dos detalhes mais insignificantes. Sem dúvida, o reflexo que se origina simplesmente nele mesmo não é nada. É um comportamento condicionado, um hábito. Não podendo-se avançar mais.
Tenho visto no Movimento Regenerativo esse movimento reflexo. Cada vez que se executa o mesmo movimento, exatamente com a mesma duração. Não existe um desenvolvimento em profundidade.
Recordo uma história que nos contou um professor no colégio, faz cerca de 50 anos. Um judoka, 3° Dan, estava em uma discoteca. Uma briga começou entre ele e um brigão. O judoka que possuía bons reflexos, aplicou-lhe um Hanegoshi, puxando em direção de si os dois braços do oponente. Ao mesmo tempo, este último sacou uma faca, com a ponta em direção do judoka. Com o mesmo gesto que lhe permitiu projetar seu adversário no ar, o judoka recebeu a faca no ventre. Se ele não tivesse tido este reflexo, teria salvado sua vida, em troca de alguns golpes e bofetões.
Algumas moças têm me perguntado o que fazer em caso de perigo. Por exemplo, quando o agressor as agarra de tal ou qual maneira. As ensino como poderiam se livrar de um agarramento. Com um pouco de astúcia comercial, poderia instituir uma classe com muita publicidade sensacionalista: (Senhoritas, defendam-se contra a agressão. Método eficaz.) Uma seleção de jovens bonitas que jogam o agressor, e eu sendo o atacante. Que trabalho mais agradável!
Não demorei em compreender a futilidade de tal ensinamento. O menor dos gestos é parte de um conjunto mais amplo e não se pode fazer um único gesto sem o domínio deste conjunto. Separar uma parte com um fim determinado, é impossível. A idéia de que se pode executar uma sucessão de movimentos programados com calma, como se faria com receitas de culinária, é tão ridícula como desastrosa.
Conheço duas soluções diametralmente opostas: uma pelo sangue frio e a outra pela força do inconsciente.
Uma mulher se deixou agarrar e no momento em que o agressor, satisfeito, se pôs a beijá-la, ela com decisão lhe mordeu a língua. No dia seguinte encontraram o culpado tratando de sua ferida com um médico. A mulher não recorda o que ocorreu. O demônio em seu corpo foi quem fez tudo. Recorda-se de ter ouvido um grito de dor. Porém quando voltou a si, não havia rastro do agressor.
Esta força do inconsciente, é o Ki. Pode ocorrer que mulheres fracas fisicamente consigam levantar um carro, quando se apresenta a necessidade. Não existe nenhuma técnica que nos permita realizar tal proeza.
Se as pessoas se interessam pelo reflexo, a técnica e a musculação, este é assunto delas. São aspectos que não me interessam muito. Se desenvolve-se o reflexo até o ponto que a pessoa se põem automaticamente em posição de combate cada vez que alguém aproxima-se dela com um martelo ou uma serra, cada vez que o chefe de departamento levanta a mão para coçar a cabeça, cada vez que o açougueiro pegar sua faca para cortar um pouco de carne, é muito possível que ela passe por uma pessoa pouco comum. Ela não mais poderá ir ao cabeleireiro, porque o mesmo segura uma navalha que pode cortar o seu pescoço “em um instante”.
Se falamos da técnica? Há pessoas que são verdadeiros repertórios vivos da técnica. Executam gestos como se fossem programados por um computador. Porém se sente, olhando-os, que lhes falta algo. Não há calor humano. São bonecos mecânicos.
O Mestre Ueshiba, quando eu o vi em seus últimos anos, parecia não ter a noção da técnica. Fazia gestos do nada e seus adversários caíam. Era como um menino que se diverte com qualquer coisa, de qualquer maneira. De vez em quando, perguntava: “Como se chama isso ?” Seus discípulos respondiam, dando-lhe um nome tirado da terminologia sabiamente construída. “Ah, é?” e seguia divertindo-se. É impossível aplicar nomes a todos os gestos. Ele era livre e natural como os ventos e as ondas. Desconcertava a quem desejava estruturar o Aikido.
Na Europa onde a noção do Ki não existe, é inevitável definir o Aikido como um esporte de combate. Quem diz esporte, diz musculação.
Por outro lado, é muito difícil dissuadir os jovens de fazer musculação. Para eles é uma necessidade fisiológica. Um esporte que não venha acompanhado de um desgaste físico não é um esporte, etc…
Precisamente, o Aikido não é um esporte para mim. O Mestre Ueshiba repetiu isso não sei quantas vezes: “O Aikido não é um esporte, não é uma arte de combate”. Desde o princípio, então, nos encontramos em um diálogo de surdos.
Não se trata em absoluto, para mim, de fazer musculação. Além de eu mesmo nunca ter sido um esportista. A hipertrofia muscular, como dizia Aléxis Carrel, não é menos perigosa que a atrofia visceral. Meus bíceps não aumentaram de volume desde que cheguei a idade de 45 anos.
O Aikido além disso, como todas as coisas, se presta às interpretações mais variadas. Não posso pretender dar validade à minha opinião. Simplesmente posso comunicar o que tenho visto, observado e constatado eu mesmo.
 
Não é uma demonstração marcial. É uma demonstração de KI


Conheci, faz alguns anos, um jovem professor de Aikido titulado em cultura física, era portanto um esportista. Porém lhe doíam os rins e acabou por perder toda a mobilidade dos quadris. Ocorreu-lhe depois o mesmo com os braços que, por sua vez, se tornaram rígidos até o ponto de não poder dobrar os cotovelos. É um dos muitos exemplos que tenho constatado entre as pessoas que praticam artes marciais: a rigidez do corpo, provocada por esforços musculares excessivos.
Outro professor de artes marciais, veio ver-me quando dava cursos na região. Tinha problemas: sua mulher estava doente, e nele doíam os rins e além disso sentia enjôos. Antes de apresentar-se frente aos alunos, tinha que colocar uma compressa fria sobre a nuca para poder dar a aula. Estava tão agitado que me dava pena vê-lo.
“Diga-me, o que devo fazer?”
“Eu não estou qualificado profissionalmente para aconselhar-lhe, não faço mais que dirigir o Movimento Regenerador. Porém se quiser você pode vir a nossa sessão de movimento.”
“Confesso que sua resposta me deixou surpreso.”
“É que tenho que tirar férias nos próximos dias.”
“Então o que é que você queria exatamente? Uma medicina milagrosa? Uma panacéia (medicamento que serve para curar qualquer doença) do Extremo Oriente? Eu não conheço nenhuma.”
“Tenho que dormir. Tenho que acordar. Tenho que trabalhar. Tenho que sair de férias. Estamos sobrecarregados pelo sistema social. Não podemos nos libertar dele. Existem em todo o lugar, medicinas milagrosas. Não faz falta alguma buscá-los: o sonífero, o estimulante,o calmante, etc…”
“Eu não sou vendedor de milagres. Estes milagres parecem-me ao contrário muito escravizantes. Não me peça conselhos sobre estas coisas. Limito-me a simplesmente viver.”
Quando vejo estas pessoas agitadas, tenho a impressão de oferecer um copo de água inutilmente. Elas têm sede, porém suas mãos nervosas as impedem de segurá-lo. Enquanto isso, chega o ônibus e vejo seus braços agitarem-se fazendo sinal (para irem-se embora).
O que têm feito para chegar a este estado? Eles têm 15 ou 20 anos a menos do que eu. Como estarão quando tiverem 60 anos? Aos 60 anos, se tem acumulado bastante experiência de vida e isso há de servir utilmente para as próximas gerações. Nesta idade dizem, se está decrépito. Isto me faz pensar.
Há jovens orgulhosos de suas cicatrizes; a clavícula quebrada, o menisco fraturado, a dor nas costas, etc… São, segundo eles, tanto símbolos de virilidade como condecorações dadas pela sua valentia. Por minha parte contesto, que nasci homem e não sinto especialmente a necessidade de mostrar a virilidade com símbolos externos. Convém dizer também que me iniciei no Aikido com uma idade onde as pessoas em geral sentem a aproximação do envelhecimento. Minha visão é totalmente diferente da dos jovens batalhadores.
Tenho constatado na prática, um grande alívio de meu ser. O Aikido me permite fazer o vazio do cérebro. Nunca sofri de dores nos rins. Ao contrário, tenho podido aumentar a flexibilidade de meus quadris.
Porém isto não basta, tem que ser eficaz, dirão os jovens. O que entendem por eficácia? Projetar dois ou três agressores na rua e postar-se como um herói de cinema? Acreditam eles que este é o único perigo que existe na vida? Estão seguros de que não há alguém na janela da frente que esteja observando seus movimentos, com um rifle provido de um visor, e com o intuito de acomodar uma bala em suas cabeças? Além disso, é assim que um Presidente dos EUA e um Prêmio Nobel foram mortos. Não têm medo de que uma parede caia em cima deles ou que um guindaste os esmague? Que técnica aplicar quando vosso avião cai sobre o solo? Se os atacam micróbios desconhecidos, qual será vossa defesa? E quando dormem?
Tem-se que buscar medidas mais eficazes, dizem. Porém quando a morte os aponta, seja aqui ou em outro lugar, sempre os encontra. Um árabe em Bagdá se encontra com a morte que lhe diz “Virei buscá-lo amanhã pela tarde”. Dominado pelo medo, o árabe se coloca a galope sobre seu cavalo e chega a Samarra. Na hora indicada, a morte reaparece e lhe diz “Sabia que você viria por aqui”.
Seja qual for vosso método ou disciplina, se o mesmo leva à destruição, de nada serve a meus olhos.
O que é o Aikido? Não sei. Depende do que você espera. O que é o Cristianismo? Quando leio o Evangelho, compreendo Jesus. Porém com o que aconteceu depois, já não compreendo nada: cruzadas, inquisição, guerras de religião, etc… Agora vou falar brevemente da eficácia do Mestre Ueshiba. Se nenhum de seus discípulos conseguiu adquirir seu nível de eficácia, não tem culpa seu Aikido. Se Jesus vivesse na Europa cristianizada de hoje e refizesse o que fez há 20 séculos atrás, seria encarcerado por promover a desordem. O Aikido estruturado não reflete grande coisa da verdade do Mestre Ueshiba.
Numerosos ocidentais conhecem exemplos das proezas do Mestre Ueshiba. Cito aqui algumas, não para tirar proveito a favor do Aikido, e sim com o fim de poder realçar algo mais, a essência que sustenta sua arte.
Podemos dizer de maneira geral, que ele desafiou todas as leis conhecidas dos fenômenos físicos. Aqui a opinião é dividida entre os que acreditam sem poder explicá-lo, e os que o negam categoricamente. Como é possível que um homem de estatura pequena possa arremessar homens que o ultrapassam algumas vezes 20 ou mesmo 30 centímetros? Não somente um, mas vários atacantes por vez. Ele era inatacável tanto acordado como dormindo, de frente ou de costas, abertamente ou surpreendido, tanto com as mãos vazias como portando armas… inclusive com revólveres. Há de se acreditar nestas coisas ou refutá-las?
Existem várias posturas possíveis:
1. Refutar tudo o que não se explica, ainda que exista;
2. Aceitar os feitos ainda que não sejamos capazes de explicá-los;
3. Crer em tudo o que não exista.
A primeira das posturas, a dos racionalistas intransigentes, existe não só na Europa, mas também no Japão.
Taxar tudo o que se explica, de sobrenatural ou místico, é uma solução fácil que nos conduz a nada. Creio, ao contrário, que o Mestre Ueshiba foi um dos homens mais naturais que já conheci.
O Mestre Nogushi teve a oportunidade de ver o Mestre Ueshiba durante não sei qual reunião.
“O Mestre Ueshiba, é muito bom”, me disse, porém nada mais. Sua habilidade de julgamento é extraordinariamente certa. Ele pode detectar em uma fração de segundo o que alguém não havia visto depois de 30 anos. Permaneço, em todo caso, distante de ser partidário dos buscadores do sobrenatural.
Vi Mestre Ueshiba praticando com seus alunos no antigo dojo, uma construção de madeira que já não existe mais. Foi substituída por um edifício de concreto.
Vi-lhe, por exemplo, rodeado de uma dezena de alunos que armados cada um com um bastão lhe cercavam por todos os lados. Nestas condições é impossível para qualquer um fazer o menor movimento. Se move-se para a direita ou para esquerda, para frente ou para trás, é inevitável receber bastonadas no ventre ou no peito.
Ouço um grito, o Kiai, e vejo os alunos no solo com seus bastões. Ele está de pé sorridente. O que fez para escapar?
Tenho diante de mim uma foto tirada durante uma demonstração na grande festividade de Hibiya diante de 2000 espectadores. O Mestre Ueshiba segura com a mão direita um Bokken, ligeiramente dirigido para cima. Com graça, segura com sua mão esquerda uma parte de seu Hakama. Se só fosse isso, se veria a um ancião regando uma fileira de flores com um regador de boca larga. Contrariamente a isso, há três jovens fortes empurrando este bokken, agarrando-o com suas mãos, perpendicularmente ao sentido do Bokken.
Estão inclinados a 45° para exercer o máximo de sua força. Alguns instantes depois, o Mestre afrouxa o Bokken e os três jovens caem para frente em um perfeito conjunto; isto só é possível porque empurravam de verdade. Além disso conheço estes três jovens pessoalmente. Estão longe de ser complacentes, nem dispostos a fazer regalos.
Quando contei esta história para um francês, ele disse: “Matematicamente impossível” e não quis saber mais. Um bom cartesiano.
Hoje em dia a situação tem mudado um pouco, porque a mesma ciência tem demonstrado que o que é matematicamente impossível pode existir. Aqui nós temos ficado, porque a ciência não pode crer numa impossibilidade matemática. Seria ir contra a sua vocação fazê-lo.
 
 
 
Itsuo Tsuda* (1914-1984) nasceu em 1914, filho mais velho de uma rica família japonesa. Em 1934 foi para a França, onde estudou sinologia e sociologia. Em 1940 retornou ao Japão; em 1950 envolveu-se com vários aspectos culturais do Japão, estudando Teatro Nô com Mestre Hosada, Seitai com o Mestre Noguchi e Aikido com Morihei Ueshiba. Em 1970 retornou à Europa para disseminar o Movimento Regenerativo (prática terapêutica associada ao desenvolvimento de Ki) e suas idéias sobre o Ki.
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O texto de hoje foi uma reflexão encontrada no site Aikido Ilhabela . O original foi publicado no site www.geocities.com/musubi00_2000/entreitsuo.html. Na língua portuguesa foi traduzido por Rubens Caruso Júnior, do Aikido Nova Era Jundiaí e publicado no Shinbun Aiki.

Imgens e vídeos: divulgação

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