domingo, 16 de março de 2014

MENOS É MAIS


Keith R. Kernspecht
Keith R. Kernspecht (10° Grau de Mestre em WingTsun e líder vitalício da Europäische WT Organisation) mostrou sua genial perspectiva sobre defesa pessoal a uma revista de artes marciais da Finlândia durante um curso introdutório no começo dos anos 1980.



On Single Combat, de onde este texto saiu, é considerado a Bíblia das artes marciais.
MENOS É MAIS

Entrevista:
?: Si-Fu Kernspecht, que sistema de defesa pessoal você recomendaria a alguém cuja vida dependesse disto?
Kernspecht: Se houver possibilidade, o sistema Smith & Wesson. Eles fabricam armas excelentes.
?: Eu estava pensando em um sistema de defesa pessoal desarmada. Nem todos podem ou estão inclinados a portar uma arma consigo.
Kernspecht: Neste caso, ele (ou ela) deveria consultar um instrutor que seja capaz de ensinar o melhor método de defesa sem armas.
?: E qual seria o melhor, na sua opinião? Karatê, Kung-Fú, Jiu-Jítsu, Aikidô? Algumas pessoas pensam que o Boxe é a defesa mais realista.
Kernspecht: O melhor método? Quanto tempo o nosso amigo possui? Ou seria, talvez, uma mulher? Em quanto tempo ele ou ela deve ser capaz de se defender? Na semana que vem, dentro de um mês? Em um ou dois anos? Dez ou vinte anos estariam bem?
?: Ninguém realmente sabe, não é mesmo? Poderia ser preciso amanhã, talvez?
Kernspecht: Exatamente. O melhor método de defesa pessoal é um que ofereça ao homem comum na rua a melhor proteção contra agressões cotidianas e ataques, dentro do menor tempo possível. Isso significa proteção contra agarramentos, chaves-de-braço, estrangulamentos, arremessos, socos, empurrões, chutes ou, até pior, contra uma combinação destes elementos. Mas antes de tudo, o fator tempo é muito importante…
?: Espere um minuto. O que acontece se o adversário tiver uma arma de fogo, uma faca, um taco de beisebol ou uma arma semelhante?
Kernspecht: Não há nenhum sistema de auto-defesa desarmada que possa lhe garantir cem por cento de proteção quando armas estão envolvidas. Sem mencionar proteção contra um perito em facas. Qualquer instrutor que reivindica ensinar tal defesa garantida contra armas é indigno de confiança ou irresponsável. Ou ainda, ele não sabe realmente sobre o que está falando.
?: O que você quer dizer?
Kernspecht: No final dos anos setenta, um alto “Dan” em uma arte marcial que eu não vou mencionar, participou de um de meus seminários introdutórios. Nós demonstramos desde o início que ele não podia bloquear socos rápidos com o seu método. Paradoxalmente, insistiu que poderia defender-se de forma confiável contra ataques de faca. Para provar que ele estava errado, peguei uma faca de plástico, mergulhei em tinta vermelha e o ataquei. Em menos de dois segundos seu corpo inteiro foi coberto de marcas vermelho-sangue. Cabeça, pescoço, veias, tendões, músculos, praticamente tudo teria sido cortado em pedaços. A coisa mais assustadora era que este homem vinha praticando e ensinando seus truques “de defesa suicida de faca” por mais de 35 anos, tempo durante o qual adquiriu seu 10º Dan.
?: Como ele reagiu ao ser confrontado com a realidade?
Kernspecht: Depois que “cortei” seus vasos vitais com a faca de plástico, tanto do braço, quanto os tendões da perna, e o indiquei isto, ele agarrou meu braço e disse triunfalmente, para a surpresa total de todos os outros estudantes: “Certo, mas agora eu posso aplicar uma chave-de-braço!”.
?: Você deve estar brincando!
Kernspecht: Infelizmente, é verdade! Foi somente no dia seguinte ao seminário que ele percebeu tudo. No meio da aula teve um colapso nervoso. “Agora eu sei o porquê de eles nunca terem voltado”, ficou balbuciando. Como nós soubemos depois, ele tinha sido um instrutor de combate a curta distância durante a guerra, ensinara para os subordinados seus “truques” e os enviara para que lutassem atrás das linhas inimigas.
Não nos enganemos: cem por cento de proteção contra um especialista em combate com facas é impossível sem a utilização de armas. E esqueçamos desde já esses truques. O sistema ideal para todo homem deveria pelo menos dar uma chance razoável de defender a si mesmo contra cortes e estocadas, e contra ser ameaçado com uma arma de fogo a curta distância.
?: Vamos direto ao ponto. Qual método você recomenda, na verdade?
Kernspecht: Eu estava a ponto de discutir o aspecto do tempo. Em se tratando de defesa pessoal, há quatro elementos de tempo importantes a que devemos nos ater. O leigo provavelmente pensará só na velocidade individual como importante, e isto não é de forma nenhuma um fator insignificante, porém só pode ser treinado até um certo nível. Mais importante é o tempo levado para cobrir as distâncias longas ou pequenas(economia de movimento) que o sistema prescreve. A inteligência ou falta de inteligência na estrutura do próprio sistema quase imutavelmente define o terceiro componente de tempo, que é o tempo de reação. Porém, eu não posso discutir estes aspectos em detalhes, pois iria além do âmbito desta entrevista. Mas permita-me comentar sobre o tempo que uma pessoa leva para aprender um método específico.
Como você corretamente apontou, um ataque poderia acontecer a qualquer momento. Qual é a função de um método que você tem que praticar por muitos anos, antes de o tornar apto a se proteger em uma emergência. Se você pensar realisticamente, escolheria obviamente àquele método que é fácil de dominar satisfatoriamente dentro do menor tempo, e que ofereça a melhor proteção possível contra ataques convencionais.
?: Agora eu estou realmente ansioso por ouvir mais.
Kernspecht: Primeiramente, esqueça esses métodos que exijam um repertório maior que uma dúzia de movimentos para que seja efetivo.
?: Por quê? Eu estou seguro de que a maioria dos estilos de artes marciais têm cem ou até mesmo centenas de movimentos. O que existe de errado nisso?
Kernspecht: Calma, vamos do início: deixe-me levá-lo em uma excursão matemática. Por exemplo, o estilo X tem 5 “posturas” e um número correspondente de modos de mover-se, para trás, adiante à esquerda ou à direita. Somado a isso você tem modos diferentes de giro, mais pelo menos 5 a 10 técnicas defensivas…
?: … bloqueio para cima, bloqueio para baixo, bloqueio para fora, bloqueio para dentro, aparando com ambos os braços, com as pernas…
Kernspecht: Então você tem que aprender os tipos diferentes de batidas: golpeando com o punho em forma de martelo, com o interior ou fora da extremidade da mão, a parte de trás da mão, a parte de trás do punho. Some ainda várias técnicas de cotovelo e joelho, mais um grande número de técnicas de pé. Mas todas estas são só técnicas individuais. Elas ainda devem ser combinadas para produzir um sistema coordenado.
?: Praticar somente tais técnicas básicas não leva a pessoa a nenhuma parte. As várias combinações ainda têm que ser praticadas com um parceiro móvel, portanto minha estimativa de 100 movimentos diferentes foi provavelmente bastante conservadora.
Kernspecht: Não esqueça de defesa contra uma combinação de ataques. Alguns instrutores de defesa pessoal escrevem e falam sobre mais de 10.000 modos diferentes de ser atacado sem uma arma.
?: É por isso que a maioria das disciplinas de defesa pessoal ensina milhares de contra-ataques. É somente lógico. Quanto mais técnicas a pessoa sabe, melhor será sua defesa, ou não?
Kernspecht: Totalmente o oposto é verdade!
Quanto mais técnicas você tem que escolher, maior será a confusão em uma situação de emergência. Porque quando você está sob pressão, você tem que tomar uma decisão dentro de frações de segundo, e toda decisão custa tempo. Tempo precioso. Quanto menor a quantidade de decisões que você precisa fazer durante uma luta, melhor para você, porque você pode reagir mais rápido. É por este motivo que o seguinte lema se aplica a qualquer defesa pessoal prática:

Menos É Mais!
O melhor método de defesa pessoal é aquele onde se pode enfrentar o maior número de ataques usando o menor número de movimentos.
?: Você está sugerindo que um método que requer só um movimento bem-sucedido contra qualquer ataque possível seja o melhor?
Kernspecht: Absolutamente certo! Por isto é que no início eu mencionei o Smith & Wesson: puxe, aponte e atire em um movimento. Com a minha experiência eu calculo que um movimento pode ser dominado suficientemente com 10 horas de prática. Um método que envolve 10 movimentos requererá 10 vezes 10 horas, dessa forma, com 100 horas a pessoa já pode confiar neste sistema. Então, um método de defesa pessoal que consiste em 100 movimentos requereria 1.000 horas, porém, neste caso, não estamos considerando os problemas causados pela maior gama de opções.
?: Ninguém realmente faz uma aula que dure 10 horas, no entanto: as aulas em uma academia, clube ou “dojo” são praticadas normalmente duas vezes por semana e em geral com 1 a 1 e ½ hora de duração. Assim, quanto tempo levaria para dominar estilo X com 100 movimentos diferentes?
Kernspecht: É difícil de dizer, porque na maioria das academias muito tempo é gasto em outras coisas (por exemplo, pagamento de inscrições), meditação, cerimônias, ginásticas, exercícios para desenvolver força, exercícios de respiração, Katas, etc. Falando de modo geral, defesa pessoal é apenas um de vários aspectos, muitas vezes negligenciado.
?: Mas são anunciados cursos de defesa pessoal em todos os lugares!
Kernspecht: O “apelo” defesa pessoal é um modo muito útil para recrutar novos associados. De fato a realidade de tais cursos é bastante diferente. O treinamento não é estruturado para lhe ensinar como lutar. Normalmente se concentra nos aspectos que têm só uma conexão remota com lutar.
?: Você está dizendo que faixas, exercícios de respiração e Katás não têm nada que ver com auto-defesa?
Kernspecht: Oh, sim, realmente eles têm, da mesma forma que vestir calções de banho e fazer um aquecimento em terra tem a ver com nadar o Canal da Mancha.
?: Esta declaração não lhe fará nenhum amigo entre instrutores tradicionais.
Kernspecht: E daí? Em primeiro lugar, você pediu minha opinião, em segundo lugar, eu não estou querendo ganhar nenhuma pesquisa de popularidade, e em terceiro lugar, eu me considero muito tradicional. O que eu estou descrevendo é a perspectiva geral do meu sistema. Meu sistema é quatro vezes mais velho que o Karatê japonês, por exemplo. Além disso, eu não estou criticando Katas, etc. Eles têm o seu lugar e também podem ter algo a ver com defesa pessoal, mas naturalmente não podem ser considerados como uma preparação direta para um conflito.
?: Eu acho que eu sei o que você quer dizer. Vamos voltar ao nosso exemplo aritmético.
Kernspecht: OK. Uma hora e meia de treinamento duas vezes por semana significa no máximo uma hora de fato gasta praticando técnicas realistas de defesa pessoal. Se você deduz o tempo perdido por causa de feriados, doenças, ausências por falta de entusiasmo, compromissos particulares e empresariais, etc., sobram menos de 40 horas de treinamento em um ano. Não é muito, é?
?: Assim se eu quiser poder me defender dentro de, digamos, um ano, eu preciso achar um estilo que trabalha só com quatro movimentos?
Kernspecht: É isso aí. Começamos agora a nos entender. Se seu método precisa de oito movimentos, você levará o dobro do tempo, isto é 2 anos. Se seu instrutor ensina um estilo que envolve 80 movimentos você alcançará sua meta em 20 anos. Se você já tem 20 anos de idade e decidiu agora a aprender um método com 800 movimentos, você poderá eventualmente se defender quando for um Mathusalém de 220 anos. Mas não se esqueça que o número de escolhas também aumenta com o aumento do número de movimentos.
?: Pare! Você está me deixando tonto. Há algumas escolas que orgulhosamente ostentam que têm 6.000 ou mais movimentos! Mas você realmente está dizendo que o indivíduo tem que aprender cada movimento separadamente? Seguramente há alguns movimentos que são tão semelhante a outros que eles podem ser aprendidos “an passant”, por assim se dizer?
Kernspecht: Sem dúvida isto é correto, mas isso não o poupará um único ano. Além disso, você terá um novo choque, porque você pode dobrar quase o número de anos requeridos se você considerar que cada técnica deve ser praticada dos dois lados, isto é, direito e esquerdo. Assumindo que nosso estilo é baseado em 80 técnicas, nós teríamos que aprender 160 movimentos diferentes.
?: Em outras palavras, a pessoa precisaria de aproximadamente 40 anos para dominar adequadamente um estilo de defesa pessoal com 80 técnicas? Como qualquer pessoa pode se tornar um mestre de Karatê possivelmente dentro de 5 a 10 anos?
Kernspecht: Em primeiro lugar, nem todo mundo pode se tornar um mestre de Karatê, até mesmo depois de anos de treinamento. Além disso, alguém com ambições nessa direção treinará mais que 3 horas por semana, provavelmente 4 vezes por semana, 3 horas por sessão. Com tal treinamento intensivo você pode alcançar sua meta em menos de um quarto do tempo, isto é, em menos de 10 anos.
?: Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, e em várias ocasiões, aqueles vários possuidores de Dan em outros estilos de Budô, impotentes e frustrados quando foram confrontados com seu sistema, eu pensaria que você estivesse louco. Mas eu receio que tenha razão. Não há nenhuma outra solução? As pessoas dizem que em Karatê, por exemplo, só alguns movimentos conduzem ao sucesso em competições (Kumitê). Por exemplo, movimentos como o Guiaku-Tzuki ou o Mae-Geri?
Kernspecht: Deixe-me dar uma resposta mais geral. Se um estilo tem só algumas técnicas efetivas, isto é melhor que nada. Mas eu desejo saber por que a pessoa tem que aprender as técnicas ineficazes também. Neste momento alguém pode corretamente dizer que eles não estão aprendendo um estilo Y principalmente como um meio de defesa pessoal, e que aqueles outros aspectos como preparo físico, agilidade, contato social, construção de caráter, etc. são mais importantes.
?: Mas não é isso eu quis saber.
Kernspecht: A única possível solução para defesa pessoal é um sistema que está baseado em poucas técnicas e elimina qualquer coisa desnecessária desde o começo. E não irá funcionar – como é prática comum em alguns estilos – pegar algumas técnicas de outros métodos, pois elas não terão nenhuma relação com o seu sistema. É por isso que eu aconselharia qualquer pessoa em busca de proteção a aprender um sistema que considera aproximadamente 12 movimentos suficientes. Isto levaria cerca de 3 anos. Se o estudante é muito determinado e o ensino vai direto ao ponto, então as 3 horas de treinamento por semana realmente significariam pelo menos de fato 2 horas gastadas em defesa pessoal…
?: … e nosso estudante fictício seria capaz de se defender só depois de 1 ano e ½ . Parece mais correto, mas eu não conheço qualquer método com tal estrutura.
Kernspecht: Eu sim. O sistema que eu ensino consiste de 2 movimentos ativos, 4 reações passivas e uma reação passiva de emergência que age como uma válvula de alívio de pressão. Além disso, nós seguimos quatro princípios de luta e quatro princípios para lidar com a força.
?: Eu não entendi uma palavra. Quantas técnicas seus estudantes têm que aprender?
Kernspecht: Nenhuma. Nosso sistema não tem nenhuma técnica formal ou combinações fixas. Nós reagimos às ações de nossos oponentes. Nós “pegamos emprestada” a força deles e até mesmo a sua velocidade para os derrotar. Mas, respondendo a sua pergunta por completo, o estudante precisa aprender 12 movimentos ou reações, esquerda e direita, para na defesa pessoal efetiva.
?: Quantas pessoas você já ensinou?
Kernspecht: Eu suponho que aproximadamente duzentas mil ou mais. Principalmente na Europa, mas também nos Estados Unidos e na Ásia.
?: Eu sei que você vem praticando todo o tipo de artes marciais desde o final dos anos cinqüenta e tem sido instrutor por aproximadamente trinta anos. Qual a sua opinião sobre as artes marciais?
Kernspecht: Nós estávamos falando sobre defesa pessoal prática. Agora entramos em um tópico completamente diferente! Todas as artes marciais são parte de uma grande família. Cada uma tem pontos fracos e pontos fortes. Algumas têm boas técnicas de chute, algumas possuem técnicas de mão melhores e outras se especializam em combate a curta distância. Algumas melhoram sua saúde, outras se especializam em competições esportivas ou em defesa pessoal. Ainda outro grupo parece muito bom para uma ópera chinesa. Todos têm os seus propósitos, o seu lugar e seus praticantes, que esperam o que o seu estilo tem a oferecer e nada mais. Argumentos racionais ficam deslocados em uma relação pessoal onde sentimentos são envolvidos. Da mesma maneira que você não persuadirá um fã de motos leves italianas a comprar uma Harley Davidson, você não converterá um discípulo de Shotokan convicto para o Kung-Fú estilo Garça. Eu pratico e ensino meu sistema com convicção absoluta, porém eu também admiro o poder e beleza de um Katá de Karatê bem executado ou a arte de um chute de Tae-Kwon-Dô. A elegância de uma projeção de Aikidô me emociona tanto quanto um combate duro de Muay Thai.
?: Muito obrigado por esta entrevista.

Referências e imagem:
PERSPECTIVA TOTAL

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