A figura ao lado dá uma idéia da importância da cortesia e das boas maneiras não só nas artes marciais, como também na vida. O texto de hoje ilustra isso de uma forma impressionante. Nos foi apresentado por Priscilla Gorzoni e é de autoria de Anderson Gomes de Oliveira, tendo sido postado originalmente no site da ABA- Academia Brasiliense de Aikido. O sensei Anderson é 4º dan em Aikido e 4º dan em Karate Goju Ryu. As imagens foram adicionadas apenas como forma de divulgação. Sugerimos ainda aos que quiserem se aprofundar sobre a importância das boas maneiras na defesa pessoal ler A Boa Educação e a Defesa Pessoal . Boa leitura!
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Reflexões Sobre REIGI (cortesia e boas maneiras).
Nas artes marciais tradicionais japonesas, uma das marcas registradas é (ou deveria ser) a cortesia entre os praticantes.
Embora a palavra cortesia possa ser usada como um equivalente de REIGI, em qualquer expressão japonesa não se pode simplesmente fazer uma tradução direta mantendo a equivalência perfeita. Embora a cortesia seja um dos aspectos de REIGI, o conceito é muito mais amplo e tem conotações históricas, sociais e psicológicas bem mais profundas do que a palavra cortesia pode denotar.
Em qualquer atividade marcial, seja uma arte oriental ou não, podemos perceber a existência de protocolos rígidos de ação. Às vezes, mínimas coisas se tornam ritualizadas. Tal ritualização, que no caso das artes orientais pode beirar o misticismo e a afetação, muitas vezes pode parecer sem sentido para um observador externo e até mesmo para muitos praticantes.
- A continência dos soldados;
- A posição de portar os rifles pelos caçadores e dos soldados em desfile nas paradas;
- O cumprimento entre os praticantes, que se curvam antes de executar uma técnica;
- O cumprimento do praticante de Karatê ou Kung Fu a um adversário imaginário antes de iniciar a execução de formas solo;
- Os elaborados e floreados cumprimentos dos duelistas (seja com espadas ou pistolas;
- O jeito dos praticantes de Kenjutsu de carregar as espadas enquanto estão se deslocando pelo dojô;
- O cumprimento de joelhos antes e depois das aulas;
- O cumprimento de joelhos entre os praticantes de suwari-waza no Aikidô.
O que há em comum entre todas essas formas e o que elas têm a ver com REIGI?
Vamos examinar os dois primeiros exemplos:
A continência entre os soldados vem de uma época (no ocidente) onde os nobres cavaleiros portavam elmos com viseiras protetoras, tanto durante batalhas quanto em torneios.
Ora, quando dois cavaleiros se encontravam frente a frente, a etiqueta mandava que um se apresentasse ao outro. Isso obviamente tinha razões práticas, afinal, como reconhecer amigo ou inimigo já que as armaduras naquela época não eram padronizadas? Além do mais, aqui também há uma preocupação ética. Veja que estamos falando de cavaleiros (ou seja, de nobres) e um nobre que se prezasse não ia se dar o trabalho de enfrentar um inimigo considerado desprezível.
Como era feita a apresentação?
Os cavaleiros levantavam a viseira para que um visse o rosto do outro e cada um informava quem era, por quem lutava, sua linhagem, etc.
Percebem como o gesto de levantar a viseira, em uma posição corporal rígida (lembrem da armadura) levou ao gesto de “bater continência”?
Por outro lado, imaginem se os soldados nas paradas militares, um marchando atrás do outro, andassem com os rifles em riste.
Cada tropeção poderia significar um tiro no colega da frente (sem contar as baionetas, claro).
Estes exemplos mostram uma raiz comum para várias ações praticadas pelos soldados que não parecem ter nenhum vínculo com a sua atividade fim.
Voltando às artes japonesas e ao REIGI, no Kenjutsu carrega-se as espadas e bastões, mesmo de madeira, com as pontas para baixo e junto ao corpo (nada de ficar brandindo as espadas e os bastões quando não se está treinando!). Imaginem os acidentes em um dojô cheio se as pessoas carregassem os bastões sobre os ombros como quem carrega uma vara com uma trouxa de roupas pendurada na ponta.
Um giro distraído para lá e pronto, já era o olho de um colega de treino. Um giro para cá e lá se vai a orelha de outro colega..Tudo bem ao estilo “Os Três Patetas”.
O que há de comum entre as ações exemplificadas acima?
Todas elas são partes de protocolos de segurança.
Porque soldados precisam de protocolos de segurança?
Afinal, se estamos preparando pessoas para ir à guerra, não seria melhor que eles fossem bárbaros ferozes?
Não é curioso que, ao longo dos séculos, os generais tenham percebido que, apesar de a ferocidade natural ser muito assustadora, um batalhão de soldados bem disciplinados e treinados poderia, com maior probabilidade, derrotar uma horda de bárbaros.
Assim, por exemplo, os romanos dominaram toda a Europa (exceto pelos gauleses de Asterix, claro).
Não é paradoxal isso? Uma tropa disciplinada ser mais eficiente que uma tropa selvagem?
Na verdade, o paradoxo é apenas aparente. A própria raiz do treinamento militar se baseia em produzir soldados tecnicamente capazes de agir tão ou mais violentamente que o inimigo. Por outro lado, o inimigo também se preocupa em produzir soldados violentamente eficientes.
Os protocolos de segurança fazem parte e, na verdade, uma parte muito importante, do treinamento militar porque eles permitem que os soldados sejam treinados e disciplinados em condições controladas. Se os soldados treinassem em condições “reais” de batalha (com balas de verdade, lâminas de verdade, granadas de verdade, lutas corpo a corpo até as últimas conseqüências), provavelmente o número de baixas seria muito maior mesmo antes de sair dos quartéis para a batalha de verdade.
Percebem o que isso tem a ver com REIGI, cortesia e boas maneiras nas artes marciais?
Comumente se diz que as artes marciais (pelo menos as mais antigas) se originaram em campo de batalha. Essa é uma afirmação importante para o entendimento do conceito de REIGI. As artes marciais originaram-se em campo de batalha e as melhores técnicas foram sistematizadas para se tornar o treinamento preparatório dos soldados de então.
Perceba que, quanto mais antiga e tradicional a arte marcial, mais rígido é o protocolo de cumprimentos e mesuras e mais cuidadosos são os praticantes. .
A partir do que discutimos acima é fácil entender o porquê disso.
Se eram artes usadas em treinamento militar, os praticantes tinham que dosar corretamente agressividade e precisão para não esfolar vivos os seus próprios camaradas antes da batalha.
Que lealdade ou espírito de corpo um general poderia esperar se ele colocasse os seus soldados para competir ferozmente entre si durante os treinamentos?.
Que ordem ou disciplina ele poderia esperar se cada soldado fizesse o quisesse?.
Por isso os protocolos. Por isso REIGI.
Quando treinamos uma arte marcial tradicional, especialmente no modelo japonês de treinamento combinado (kata) temos o UKE e o NAGE.
Para os praticantes mais sérios é fácil perceber o porquê de todo o protocolo de cumprimento e toda a atitude respeitosa que essas práticas envolvem. Quando o uke se oferece para atacar o nage, mesmo sabendo que ele vai aplicar uma técnica onde a mínima falha ou falta de precisão pode ser fatal ele está, literalmente colocando sua vida nas mãos do nage.
Já pararam para pensar nisso? Um mínimo escorregão, um pouco de força demais, um movimento mais rápido ou inesperado e fora do combinado podem resultar em um leque de resultados que vai de escoriações até a incapacitação e morte.
É uma atitude muito corajosa do uke (ou uma temeridade se ele não tem maturidade bastante para avaliar as conseqüências). Essa atitude merece o maior respeito do nage. .
Ela merece mais do que cortesia e boas maneiras. .
Ela merece REIGI.
Se pensarmos em uma arte marcial com uma proposta de ir além da capacidade técnica como o Aikidô, que pretende ser um modo de vida e mesmo uma ideologia, transcendendo o meramente técnico, a falta de REIGI, além das conseqüências materiais discutidas, reveste-se de uma conotação ética. Aqui o uke não está só ajudando o nage a desenvolver uma boa técnica. Ele está, presume-se, ajudando o uke a percorrer um caminho que é também espiritual. Se não há REIGI entre os praticantes, o que os diferencia dos charlatães e falsos profetas que andam por aí a se aproveitar da fé dos mais simples para os seus próprios objetivos? O que pode ser menos ético que isso?.
Falamos muito do papel do nage na prática da arte marcial em relação a REIGI. Mas, na verdade, trata-se de uma interação, que exige atitudes dos dois. Assim como o nage deve ter sempre um sentimento de gratidão em relação ao uke, este não pode se supervalorizar a ponto de correr o risco de inflar o seu ego e, claro, não deve jamais esquecer de se sentir agradecido pelo fato de o nage seguir à risca as instruções de segurança, os protocolos, a cortesia e as boas maneiras. E, principalmente, não deve nunca se esquecer de que os papéis também se invertem.
REIGI, apesar de sua origem pragmática, também tem uma dimensão ética/espiritual. Ambos os praticantes devem ter um sentimento de gratidão e reconhecimento com o colega que o ajuda a percorrer o caminho. REIGI é uma materialização desse sentimento. Todo o resto dos protocolos de segurança decorre disso.
REIGI está em pequenas coisas como manter as unhas aparadas para evitar acidentes, manter os uniformes limpos ou mesmo sorrir e encorajar o colega de treino.
REIGI também está nas grandes coisas, como manter total concentração antes, durante e depois da execução de uma técnica para evitar acidentes.
REIGI está em manter uma postura psicológica equilibrada. Em não participar de um treinamento quando se está zangado, irritado, eufórico, excitado.
Um TREINAMENTO MARCIAL talvez fosse muito mais realista do ponto de vista de efetividade técnica sem REIGI. Afinal, como esperar gratidão, cortesia ou boas maneiras de um assaltante, de um seqüestrador ou de um “inimigo”?
Uma ARTE MARCIAL que usa o sufixo “DÔ” no seu nome, como AIKIDÔ, KARATÊ-DÔ, IAI-DÔ, JODÔ, etc. é um BUDÔ e supõe, principalmente, superação de si mesmo.
Uma luta supõe, principalmente, superação do outro.
Sensei Anderson Gomes de Oliveira e o Mestre Martins |
Pode haver eficiência técnica sem REIGI, pode haver luta sem REIGI.
Mas não pode haver arte marcial (Budô) sem REIGI.
Brasília, 22 de setembro de 2006.
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